O amor que a gente inventa
Comentando a Pergunta da Semana
A maioria das pessoas que responderam à enquete da semana acredita que o amor a gente inventa. Em quatro décadas de consultório e inúmeras mensagens recebidas, não tenho dúvidas de que isso ocorre com frequência. Um bom exemplo é o relato de Lúcia.
Ela estava apaixonada. Psicóloga, 29 anos, recém-separada, era quase impossível isso acontecer devido a sua exigência intelectual em relação às pessoas. Mas conheceu Artur, um jovem de 20 anos, e só pensava nele. Na primeira noite que se viram, conversaram até às seis horas da manhã. Estava exultante: "É inacreditável como ele pode ter uma cabeça tão interessante, tendo só 20 anos. Não paramos de conversar um minuto. Tem tudo a ver comigo. Nossa visão de mundo e nossas ideias são as mesmas. Há muito tempo não encontro alguém tão estimulante."
Passadas algumas semanas, quando já havia se desencantado e não pensava mais em Artur, percebeu com clareza o que se passara no primeiro encontro. "Não sei como não enxerguei. Eu falava sozinha o tempo todo. Ele só me olhava e dizia: "Podes crer." Acho que nunca ouvi dele qualquer ideia sobre qualquer coisa. Aliás, acho que nem uma frase inteira. É um completo idiota."
Quantas vezes ouvimos a descrição do parceiro amoroso de alguém como sendo uma pessoa maravilhosa, bonita, inteligente e quando somos apresentados a ela levamos um choque?
O amor existe sim, mas o amor romântico, aquele que no Ocidente todos anseiam viver, a gente inventa. É um tipo de amor construído em torno da projeção e da idealização sobre a imagem em vez da realidade. A pessoa amada não é percebida com clareza, mas através de uma névoa que distorce o real. Os amigos dizem: "O que ela viu nele?" ou "O que ele viu nela?" Porque eles veem a pessoa, enquanto você vê a imagem idealizada dela.
Todas as expectativas e ideais do amor romântico nos são passados como a única forma de amor, e aprendemos a sonhar e a buscar um dia viver tal encantamento. Esse tipo de amor contém a ideia de que duas pessoas se transformam numa só, havendo complementação total e nada lhes faltando. Entre outras regras, prega que não é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo, que cada um terá todas as suas necessidades satisfeitas pelo parceiro (a) e nunca sentirá desejo sexual por mais ninguém, porque o amado é a única fonte de interesse do outro.
O amor romântico não é apenas uma forma de amor, mas todo um conjunto psicológico — uma combinação de ideais, crenças, atitudes e expectativas. Essas ideias coexistem no inconsciente das pessoas e dominam seus comportamentos e reações. Inconscientemente, predetermina-se como deve ser o relacionamento com outra pessoa, o que se deve sentir e como reagir.
A questão é que a convivência torna evidentes as diversas características de personalidade do outro. Seu jeito de ser e de pensar, como também sua generosidade ou seu egoísmo, sua coragem ou suas inseguranças… Alguns aspectos nos causam admiração, outros repúdio, mas de qualquer forma não conseguimos mais perceber o outro tão maravilhoso e idealizado como no início da relação. As nossas projeções sofrem a interferência da realidade. É inevitável então o desencanto e a sensação de ter sido enganado.
Vivemos um período de grandes transformações no mundo, e, no que diz respeito ao amor, o dilema atual se situa entre o desejo de simbiose com o parceiro e o desejo de liberdade. Entretanto, desejar viver relações de amor fora do modelo romântico pode ser frustrante. As pessoas são viciadas nesse tipo de amor e fica difícil encontrar parceiros que já tenham se libertado dele. Mas acredito ser apenas uma questão de tempo. As mudanças são lentas e graduais, mas definitivas, nesse caso.
Para quem imagina que vai perder alguma coisa ao desistir do amor romântico, Bonnie Kreps, cineasta canadense que escreveu um livro sobre o tema, é animadora. Ela diz que deixar o hábito de "apaixonar-se loucamente" para a novidade de entrar num tipo de amor sem projeções e idealizações também tem sua própria excitação.
Kreps acredita que é a mesma sensação de utilizar novos músculos, que sempre tivemos, mas nunca usamos por causa de nosso modo de vida. "Entretanto, ao começar a utilizá-los podemos fazer com nosso corpo coisas que antes nunca conseguimos. Os músculos psicológicos também existem e devemos olhar através da camuflagem do mito do amor romântico a fim de encontrá-los — e, então, ver com o que se parecerá o amor quando mais pessoas começarem a flexioná-los.", diz ela.
Quem sabe não teremos grandes surpresas?
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