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Regina Navarro Lins

Maternidade imposta

Regina Navarro Lins

04/10/2014 07h00

Ilustração: Lumi Mae

Ilustração: Lumi Mae

Comentando o "Se eu fosse você"

A questão da semana é o caso da internauta cujo marido insiste em vê-la grávida, mas ela não deseja ter filhos. Apesar de a mulher ter se emancipado em vários aspectos, a maior expectativa que ainda hoje se tem em relação a ela é que seja mãe. Não é raro olhar-se com piedade para as mulheres que não têm filhos e criticar as que não querem tê-los. Os comentários de alguns internautas mostram bem isso. A mulher que relatou sua questão quanto à maternidade foi chamada de egoísta por vários deles.

A pressão é tanta que é raro encontrar uma mulher com mais de 35 anos que, não tendo filhos, esteja tranquila quanto à possibilidade de nunca vir a ser mãe. Com o passar do tempo, algumas tomam decisões que não podem mais ser adiadas: escolhem qualquer homem para ser pai do seu filho ou então, numa medida mais extrema, buscam num banco de sêmen um doador desconhecido.

Será que todas essas mulheres inquietas quanto à maternidade desejam realmente ter filhos? Ser mãe seria então um desejo inerente à natureza da mulher, que só assim alcançaria a plena realização? Não acredito nisso. Mesmo porque a maternidade, como vários outros aspectos da nossa vida tidos como inquestionáveis, tem uma história.

Em todas as épocas e lugares, a partir da instituição do patriarcado, há cinco mil anos, era comum o homem repudiar a mulher e se casar novamente. Para isso não faltavam pretextos e um dos mais convincentes era o não nascimento de um filho. Afinal, ele queria ter um herdeiro ou mais braços para ajudá-lo no trabalho.

O contrato de casamento era feito entre as duas famílias e, caso a mulher não procriasse, era devolvida aos pais ou ia para um convento. O casamento só se tornou indissolúvel a partir do século 13, quando a Igreja passou a controlá-lo. Entretanto, observando a forma como as mães se relacionavam com os filhos nos séculos 17 e 18, fica claro que não somente o desejo ter filhos, mas também o amor materno, não é inerente às mulheres. É um sentimento que pode ou não se desenvolver, dependendo dos interesses sócio-econômicos de um grupo.

Naquela época a amamentação foi considerada ridícula e repugnante e não era digno uma mulher amamentar seu próprio filho. Só para se ter uma ideia, das 21 mil crianças nascidas em Paris, em 1780, menos de mil foram amamentadas pelas mães. Todas as outras foram entregues a amas-de-leite, na maioria das vezes mulheres doentes, que nem leite tinham.

Os pedagogos recomendavam aos pais frieza em relação aos filhos, lembrando-lhes incessantemente sua malignidade natural, que seria pecado alimentar. E as mães eram criticadas duramente caso demonstrassem ternura. A finalidade da educação era salvar a alma do pecado; para isso não se poupavam argumentos para convencer as mães de que as crianças deveriam ser severamente castigadas.

Mas houve uma grande reviravolta. A inclusão da ideia do amor romântico como possibilidade no casamento, junto a outras várias influências, transformou as mentalidades a partir do final do século 18. Com o surgimento das fábricas e escritórios, a área doméstica começou a se opor à área pública, cultivando-se a casa como lar e a necessária privacidade.

Ocorreu então o que alguns autores denominam "a invenção da maternidade". O novo papel da mulher, a mãe idealizada, originou uma nova concepção de feminilidade. A imagem da esposa e mãe reforçou um modelo diferente para os dois sexos das atividades e dos sentimentos. Associou-se maternidade à feminilidade, como sendo atributos da personalidade.

No século 19 várias teorias foram criadas sustentando que o único prazer da mulher era ter filhos e criá-los, e que ela não se interessaria por sexo. Seu aparelho genital serviria tão somente à procriação. O fato de ser capaz de ter filhos passou a significar que os desejaria naturalmente.

Claro que essas ideias, além de comprometerem a sexualidade feminina, atuam como pressão ideológica. Muitas mulheres acreditam que desejam filhos sem que esse desejo realmente exista. Quando o condicionamento cultural é muito forte, ao nos tornar adultos não sabemos diferenciar o que desejamos realmente e o que aprendemos a desejar.

Atualmente outra grande transformação está em andamento. Para as mulheres que julgam que sua realização pessoal depende do êxito profissional, a questão da maternidade se coloca em outros termos. Elas têm filhos cada vez mais tarde e esperam de seus parceiros uma divisão igualitária nos trabalhos domésticos e na educação das crianças.

E a crescente rejeição aos modelos tradicionais de comportamento permite que se percebam com mais clareza os próprios desejos. Ter ou não ter filhos passa a ser uma opção individual, longe da cobrança de corresponder ao modelo imposto de mulher ideal.

Sobre a autora

Regina Navarro Lins é psicanalista e escritora, autora de 12 livros sobre relacionamento amoroso e sexual, entre eles o best seller “A Cama na Varanda”, “O Livro do Amor” e "Novas Formas de Amar". Atende em consultório particular há 45 anos e realiza palestras por todo o Brasil. É consultora e participante do programa “Amor & Sexo”, da TV Globo, e apresenta o quadro semanal Sexo em Pauta, no programa Em Pauta, da Globonews. Nasceu e vive no Rio de Janeiro.

Sobre o blog

A proposta deste espaço interativo é estimular a reflexão sobre formas de viver o amor e o sexo, dando uma contribuição para a mudança das mentalidades, pois acreditamos que, ao se livrarem dos preconceitos, as pessoas vivem com mais satisfação.

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