Topo

A diferença entre os sexos é produto de cada cultura ou grupo social

Regina Navarro Lins

09/08/2016 07h00

Ilustração: Lumi Mae

 

Comentando a Pergunta da Semana

A maioria das pessoas que respondeu à enquete da semana acredita que masculino e feminino não deixarão de existir. Penso o contrário.

A expectativa da sociedade é de que as pessoas cumpram seu papel sexual. Mas o que é masculino ou feminino sofre variações de acordo com a época e o lugar. Até algumas décadas atrás, não se admitia que um homem usasse cabelo comprido e muito menos brinco. Eram coisas femininas. As mulheres, por sua vez, não sonhavam usar calças, nem dirigir automóveis. Era masculino.

Acredito que a diferença entre os sexos é anatômica e fisiológica, o resto é produto de cada cultura ou grupo social. Tanto o homem como a mulher podem ser fortes e fracos, corajosos e medrosos, agressivos e dóceis, passivos e ativos, dependendo do momento e das características que predominam em cada um, independente do sexo. Insistir em manter os conceitos de feminino e masculino é prejudicial a ambos os sexos por limitar as pessoas, aprisionando-as a estereótipos.

Para entender melhor a respeito da questão de gênero, conversei com Maíra Kubík Mano, jornalista, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com estágio doutoral na Université Paris VII (Diderot). Foi editora da versão brasileira do jornal Le Monde Diplomatique e é professora adjunta do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Contato: maira.kubik@ufba.br

O QUE É GÊNERO?

Em termos teóricos, gênero é, inicialmente, uma categoria de análise que passou a ser mais difundida a partir dos anos 1980. Trata das relações sociais que envolvem homens e mulheres, permitindo-nos identificar as hierarquias estruturais colocadas entre esses grupos. Gênero surge para nos mostrar que as diferenças entre homens e mulheres não são naturais, mas sim construídas culturalmente ao longo da história. Só que elas estão tão bem sedimentadas que chegamos ao ponto de naturalizarmos a inferioridade das mulheres em relação aos homens.

A partir dos anos 1990 começamos a falar sobre identidades de gênero, que são as formas de identificação de cada um/a com o gênero masculino, feminino, ou com os dois, ou com nenhum, enfim, múltiplas possibilidades. Essas formas podem convergir ou divergir da maneira como a sociedade te enxerga desde que você nasceu.

Grosso modo, quando elas convergem, utilizamos a palavra "cisgênero". Quando elas divergem, "transgênero". A identificação é importante principalmente para nomear as pessoas "cis", que em geral não são classificadas, de tão enfiada que está nas nossas cabeças a ideia de que elas (nós, já que eu me identifico como cis) são a regra. Para quem quiser ler mais sobre o tema, recomendo o site www.transfeminismo.com .

Por fim, vale o registro, identidade de gênero não determina a sexualidade da pessoa. Você ser cisgênero, transgênero, não binário (ou seja, nenhum dos dois) etc. não tem relação direta com a pessoa estar gay, lésbica, hetero, bi etc.

GÊNERO TEM A VER COM O SEXO DA PESSOA OU ESTÁ EXCLUSIVAMENTE LIGADO AOS VALORES DE CADA CULTURA?

Gênero tem a ver com a cultura, mas o sexo também. Uma das grandes reflexões que temos a partir dos anos 1990 é que a separação natureza-cultura, que vem do Iluminismo, não se sustenta porque não é possível percebermos o sexo senão por meio da cultura. Não há nenhuma natureza humana intocada, "pura", reservada num lugar ideal, ela é sempre culturalizada porque somos seres culturais. Raciocinamos e elaboramos o sexo, então não conseguimos vê-lo de outra maneira senão pelas nossas construções sociais.

Judith Butler, uma das teóricas referência nesse campo, afirma que não há sexo que não seja, desde sempre, o gênero. Quando nascemos, e até antes disso, nosso corpo já está inserido no ambiente. Tanto é que escolhemos nomes, geralmente relacionados ao masculino quando o sexo biológico designado ao nascer é masculino, e feminino, quando o sexo biológico designado ao nascer é feminino.

E junto com isso vem toda a elaboração hierárquica que diferencia homens e mulheres: roupas azuis para menino, com estampas de foguetes e carrinhos, e rosa, mais delicado, para menina, com motivos de bonecas e lacinhos. Não conseguimos pensar no sexo sem o gênero.

O QUE É IDEOLOGIA DE GÊNERO?

A ideologia é a concepção de mundo que se manifesta na vida individual e coletiva. É o que você acredita enquanto ser humano vivendo em sociedade. A ideologia de gênero é justamente esse discurso que constitui as pessoas em homens e mulheres, em azul e rosa. A referência é o homem, branco, heterossexual, cisgênero.

Recentemente, certos parlamentares que dizem representar comunidades religiosas têm distorcido esse termo, tentando afirmar que ideologia de gênero seria justamente uma quebra de "valores" sobre o que é masculino e feminino. Não poderiam estar mais equivocados.
Na verdade, acho que há uma intencionalidade aí de fazer com que as mulheres, os gays, as lésbicas, as bissexuais, as trans, enfim, todas as pessoas que não são a norma de gênero, permaneçam em uma posição de subjugados.

É lamentável que esse tipo de discurso tenha reverberado tanto a ponto de excluir dos planos de educação toda reflexão sobre gênero nas práticas escolares. É como se o Legislativo brasileiro nos dissesse que quer manter o Brasil em primeiro lugar no vergonhoso ranking de país que mais mata travestis e trans no mundo.

O QUE É TEORIA QUEER?

Do meu ponto de vista, a Teoria Queer é uma das vertentes dos estudos de gênero e sexualidade. Queer é uma palavra inglesa que quer dizer estranho, esquisito, e era usada de maneira pejorativa, assim como "gay".
O vocabulário, inicialmente ofensivo, foi apropriado pelos movimentos e pela academia e ressignificado. A Teoria Queer vem para sacudir, problematizar, para nos fazer repensar os nossos binarismos automáticos, tão sedimentados entre bom e mau, esquerda e direita etc.

VOCÊ ACREDITA QUE DENTRO DE ALGUMAS DÉCADAS NÃO HAVERÁ MAIS DISTINÇÃO ENTRE MASCULINO E FEMININO?

Eu acho que nada desaparece totalmente e de repente, mas talvez possamos, no futuro, ter uma prevalência maior de pessoas não identificáveis no que hoje conhecemos como padrões masculinos e femininos a partir da transformação das nossas estruturas sociais hétero, tão bem construídas.

Mas não me parece que possamos enxergar esse futuro sem refletir, conjuntamente, sobre posições de raça/etnia, classe social, sexualidade, geração. Todos nós temos vários marcadores sociais que nos atravessam, e eles também atuam para determinar o quão livre somos para exercermos nossas existências como normativas e não normativas. Então o futuro precisaria dar conta de todas as opressões. Uma utopia não hierárquica.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

A diferença entre os sexos é produto de cada cultura ou grupo social - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre a autora

Regina Navarro Lins é psicanalista e escritora, autora de 12 livros sobre relacionamento amoroso e sexual, entre eles o best seller “A Cama na Varanda”, “O Livro do Amor” e "Novas Formas de Amar". Atende em consultório particular há 45 anos e realiza palestras por todo o Brasil. É consultora e participante do programa “Amor & Sexo”, da TV Globo, e apresenta o quadro semanal Sexo em Pauta, no programa Em Pauta, da Globonews. Nasceu e vive no Rio de Janeiro.

Sobre o blog

A proposta deste espaço interativo é estimular a reflexão sobre formas de viver o amor e o sexo, dando uma contribuição para a mudança das mentalidades, pois acreditamos que, ao se livrarem dos preconceitos, as pessoas vivem com mais satisfação.

Mais Posts