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Regina Navarro Lins

Cadê você? – a busca amorosa por meio de aplicativos

Regina Navarro Lins

07/06/2016 07h00

Ilustração: Lumi Mae

Ilustração: Lumi Mae

 

Comentando a Pergunta da Semana

A maioria das pessoas que respondeu à enquete da semana já conheceu alguém por meio de aplicativo de celular. A forma como as pessoas se conhecem visando uma relação amorosa tem história.

No século 19, o amor passou a ser uma possibilidade no casamento. O jovem via a moça na igreja e pedia permissão ao pai dela para visitá-la em casas. Os encontros eram na sala, com a família toda observando.

No início do século 20, o automóvel e o telefone permitiram uma grande mudança no amor: o encontro marcado. Nunca tinha havido nada parecido. Nas últimas décadas do século, os casais se conheciam nos bares e nas festas.

Atualmente, os aplicativos para celulares ganham cada vez mais espaço. Não são poucos os que iniciam um namoro ou se casam a partir dessa tecnologia.

Para entender melhor essa nova forma de se conhecer alguém, conversei com Lígia Baruch, Doutora em Psicologia pela PUC-SP, autora do livro "Uma revolução silenciosa: a sexualidade em mulheres maduras" e da Tese "Tinderelas: busca amorosa por meio de aplicativos para smartphones", ainda não publicada. Atende em consultório há 24 anos e pesquisa as relações amorosas contemporâneas mediadas pelas novas tecnologias digitais. contato@ligiabaruch.com.br

— Você acabou de defender uma Tese de doutorado sobre os aplicativos de busca amorosa, o que você pode nos contar de interessante?

Muitas coisas, Regina… em primeiro lugar descobri que os aplicativos são extremamente populares, a maior parte dos solteiros residentes nos grandes centros urbanos e portadores de um smartphone já entrou alguma vez em um desses aplicativos, mas os app de busca amorosa ainda carregam um estigma enorme, mesmo para o público mais jovem, que os considera apenas uma brincadeira para "azaração".

— Sim, muitas pessoas se referem a esses aplicativos como mecanismos que facilitam o encontro sexual. Mas não é só isso…

Pode ser isso também, mas não só. Eu propus nesta pesquisa que iniciei em 2012 a existência de três estilos de uso bem distintos entre si. O estilo curioso, o estilo recreativo e o estilo racional.

— Ah, você poderia explicar um pouco sobre esses diferentes estilos de uso?

É importante observar que eu só pesquisei mulheres urbanas a partir dos 35 anos e as chamei carinhosamente de Tinderelas na minha Tese, mas fiz também uma revisão das pesquisas internacionais sobre o assunto e posso dizer que há muito ainda a ser estudado sobre esse tema.

Encontros via internet são recentes. Os primeiros experimentos com o uso de computadores na função de cupidos datam da década de 1960 nos meios universitários norte-americanos, mas somente na década de 90 com a popularização dos computadores domésticos e a chegada da internet no Brasil, tornaram-se conhecidos por aqui. A linha do tempo do cupido na rede é chats- sites-app, hoje os aplicativos com sistema de geolocalização, a exemplo do Tinder e Happn, dominam o mercado amoroso e desbancaram os sites, seus antecessores, pela praticidade de uso.

— Interessante,… mas voltando aos estilos…

O assunto vai longe… mas vamos aos estilos. Estilo curioso é exploratório, por isso mesmo é o estilo inicial escolhido por muitas mulheres. Quando neste estilo elas não fixam objetivos claros, sabem principalmente o que não gostam e não querem numa parceria.

Experimentam muitos aplicativos, conversam com muitas pessoas diferentes, mas falam pouco de si. Podem ser mais ativas, no sentido de "puxar conversas" ou mais passivas, numa preferência maior pela observação, sem iniciativas de contato. O estilo curioso funciona como uma boa estratégia de preservação da intimidade, quando ainda se está na dúvida sobre o uso do aplicativo.

Neste estilo curioso há maior recuo na autoapresentação e autorevelação que faz muito sentido quando a pessoa encontra-se numa postura mais evitativa, como no final de um relacionamento difícil, por exemplo.

Quando há o receio de sofrer de novo, pode-se ficar muito tempo só no estilo de uso curioso, como sinalizado por uma Tinderela entrevistada na pesquisa. Ela dizia assim: "[…] se chegasse alguém perto de mim que falasse alguma coisa que eu não gostasse eu não queria nem ouvir o resto."

No entanto, quando essas Tinderelas recebiam feedbacks positivos de suas fotos, algumas delas se abriram para novas experiências e em todos os casos se encontraram presencialmente com pessoas que conheciam via aplicativos.

Estes encontros presenciais resultaram, por sua vez, em boas conversas, amizades, namoros, até noivados…, tanto que fui convidada para o casamento de uma dessas Tinderelas, que será em outubro próximo.

— Então eles funcionam…, mas Lígia, qual é a sua opinião sobre essa questão que está tão em voga a respeito dos relacionamentos líquidos, e de como a internet favorece essa fragilização dos vínculos amorosos? Qual o papel destes aplicativos nisso?

Essas ideias do sociólogo Zygmunt Bauman ficaram muito populares, mas ao meu ver trazem uma visão antiquada dos relacionamentos, trazem uma nostalgia dos tempos antigos, como se antes fosse melhor…Discordo.

Para as mulheres heterossexuais e para o público LGBT de forma geral, os avanços são enormes. Hoje muitas mulheres podem sair de casamentos abusivos, divorciar-se e encontrar companhia em qualquer idade e de acordo com seus critérios de seleção. Outras tantas podem ter um cardápio de opções, vivenciando isso sem depender de seu grupo social para apresentações…, uma vasta experiência relacional e sexual, do mesmo tamanho que antes só era permitida aos homens. Para o público LGBT nunca foi tão fácil encontrar parceria.

— Sim, hoje há muito mais liberdade de escolhas…

Liberdade e satisfação. Muitas vezes se confunde duração com satisfação, hoje graças à cultura do divórcio valoriza-se mais a satisfação do que a duração das relações. Eu acho essa mudança muito positiva.

Claro que escutei muitas estórias de decepções amorosas também, mas me parece que via aplicativos, a velocidade com que tudo acontece, e a possibilidade sempre presente de se iniciar um novo contato, faz com que tudo passe com menos dor e menos drama. Por que sentir saudade do tempo em que se morria de amor, não é mesmo?

— É exatamente o que penso…rs

Por outro lado, na maioria dos casos que resultam em um relacionamento sério, as pessoas ainda evitam revelar como se deu o primeiro contato, muito ainda pelo preconceito em relação aos encontros iniciados on-line, mas depois que se inicia, a relação segue de modo parecido com qualquer relacionamento iniciado off-line.

— E os outros estilos que você citou no início?
Eu falei do estilo curioso, agora vou falar do segundo estilo, que tem muito a ver com essa revolução na intimidade de que estamos falando.

O segundo estilo identificado, o recreativo, alude à imagem de jogar, brincar, mais próxima à ideia de leveza e diversão. Conhecer pessoas para se divertir, viver emoções e novidades é a tônica deste estilo de uso.

No estilo recreativo a Tinderela já dominou o funcionamento do aplicativo e não sente mais medo de encontros. Está com a vida preenchida de amizades, de trabalho ou de viagens, por isso não aparenta ansiedade na busca amorosa.

Este estilo de uso está mais de acordo com o padrão 'culturalmente' caracterizado como masculino, pois a vivência de encontros puramente sexuais é admitida juntamente com encontros para fins de namoro e amizade, tudo depende do momento de vida e da vontade na "hora".

No estilo recreativo, há chances de maior empoderamento feminino, por meio do agenciamento do próprio desejo, e também de maior autoconhecimento por meio de um padrão sexual "maximalista": com muitos encontros e muitas experiências.

Há também maior presença de conversas com pessoas de diferentes idades e níveis socioeconômicos. Esse estilo de uso recreativo possibilita uma ampliação da rede de contatos. Uma Tinderela recreativa me disse assim: "[…] entrei porque era um catálogo, era divertido, e eu saí com vários caras na sequência, foram dois meses que eu saia quase toda semana com um diferente."

— Mas essa postura exige uma certa dose de ousadia, não é?

Exatamente, Regina. As Tinderelas recreativas são as mais ousadas e revolucionárias e elas costumam tirar melhor proveito dos aplicativos. Quando suficientemente seguras, Tinderelas recreativas conseguem revelar-se paulatinamente, aprofundando o contato somente à medida que o outro dá sinais claros de estar fazendo o mesmo. Os relacionamentos geralmente fluem, pois têm menos ansiedade quanto ao abandono, já que o que desejam é, principalmente, diversão.

Nessa minha pesquisa, levantei a hipótese de que o estilo recreativo exija certa dose de segurança pessoal para ser adotado com resultados positivos para a autoestima da Tinderela.

Enquanto as mais autoconfiantes sentem-se poderosas e exercem seus direitos à liberdade de escolhas, as menos confiantes apresentam dilemas de gênero. Por exemplo, uma delas me disse: "Por que, que raios, na semana passada eu fui sair com um cara de 26 anos?! Rsrsrs. Gente, eu tenho 36 anos, um cara de 26 que nem se formou ainda, pelo amor de Deus!".

— Fale mais sobre essa questão do dilema nas mulheres?

O dilema surge quando a presença de comportamentos mais sexualmente ativos esbarram na crença tradicional de que "isso não leva a lugar nenhum". Trazendo a reboque o medo de que esse comportamento interfira em seu propósito de encontrar uma relação para compromisso.

O dilema: prazer versus propósito, mostra como ainda vivemos numa sociedade tradicionalista. O comportamento de algumas mulheres já mudou, mas o sentimento em relação ao comportamento, ainda não. As Tinderelas menos confiantes sentem-se fracas e fáceis quando exercem seus diretos à experimentação, pois ainda são reféns destas normas antiquadas.

— Então você acredita, Lígia, que os aplicativos são espaços para as mulheres contemporâneas mais ousadas?

Por incrível que pareça, não. Nos aplicativos encontra-se de tudo, não dá para criar estereótipos. Por exemplo, o terceiro e último estilo encontrado, o racional, é bem tradicional.

Nele a Tinderela tem um objetivo claro: encontrar um bom namorado com intuito de casar e formar família. O aspecto que mais chama a atenção neste estilo é a presença de uma racionalidade que se assemelha muito à uma entrevista profissional, mesclada ao antigo ideal romântico.

A utilização de palavras dos meios corporativos confirma essa impressão. Uma delas falava assim: "Pelo Tinder e pelo WhatsApp a gente tinha conversado por 3 horas e eu tinha sido aprovada, passei para a próxima fase, entrevista presencial, exatamente igual…". Percebe o tipo de linguagem quase empresarial, corporativa?

— Quer dizer que a Tinderela racional é a mais romântica e tradicional?

Exatamente! No estilo racional que é também o mais romântico, a conexão de almas típica do ideário romântico, surge em versão mais assertiva e tecnológica e a ordem de gênero é sustentada justamente por essas crenças românticas.

Eu costumo dizer: "o cupido sabe muito bem aonde 'deve' mirar sua flecha", rs, com isso a crença popular que diz que 'o amor é cego à razão' cai por terra.

Eu acredito que pessoas mais ansiosas, ou em momentos de vida específicos, como mulheres acima dos 35 anos que desejam ter filhos, tendem a preferir o estilo racional, pois esse vai direto ao ponto.

— Mas, essas mulheres tinham consciência de que estilo elas estavam usando ao utilizarem os aplicativos?

Não, não tinham essa percepção. Eu identifiquei esses estilos nelas, lembrando que muitas migravam de estilo a depender do momento de vida que estavam. Por exemplo, quando em férias em outro estado, claro que o foco mais era encontrar diversão, então o estilo era o recreativo. Acredito, inclusive, que na época das Olimpíadas aí no Rio, o estilo recreativo vai estourar nos app de encontros.. rs.

— Sim, sem dúvida, facilita muito as coisas! E elas ainda tem o controle nas mãos, podem pesquisar sobre os candidatos antes de sair…

Isso mesmo, Regina, observei a crença na tecnologia e na racionalidade para uma melhor seleção de parceiro. 'Informação é poder' e o Facebook e o Google funcionam como recursos de checagem de informação.

A partir destes procedimentos de confirmação de dados acontece o processo de eliminação ou de continuidade do contato com os possíveis candidatos. Essa segurança é muito importante para as mulheres nestes tempos de atenção à cultura do estupro. Hoje todos nós podemos ser detetives e usar a tecnologia a nosso favor. Aquela ideia 'dos perigos da rede', muito divulgada pela mídia na década de 90, precisa ser atualizada.

— Precisamos mesmo arejar esses conceitos ou preconceitos. E o que mais você encontrou de mudança nas relações contemporâneas?

— Além dos três estilos de uso identificados: curioso, recreativo e racional, também observei algumas mudanças trazidas pelos aplicativos às relações românticas contemporâneas. Dentre elas está a maior exposição, quantidade e velocidade dos encontros.

A partir da pesquisa, pude concluir que os aplicativos trazem um aspecto mais amplificador do que transformador às relações amorosas. O ideário romântico continua presente com algumas atualizações, dentre elas ressalta-se a presença da 'cultura terapêutica', observada por meio da crença: conhecer-se para desenvolver-se, do priorizar-se, de um linguajar terapêutico e da ideia menos romântica de relacionamento como negociação, investimento e construção.

— Você acredita que os aplicativos refletem os comportamentos tipificados de gênero da nossa sociedade ou facilitam a emergência de comportamentos femininos mais revolucionários?

Os aplicativos de busca amorosa de maneira geral refletem os comportamentos tipificados de gênero da nossa sociedade, MAS também facilitam a emergência de comportamentos sexuais femininos mais ativos e revolucionários, principalmente no estilo de uso recreativo.

Eu acredito que os aplicativos são meios que podem facilitar o agenciamento do próprio desejo por parte de algumas mulheres, pois buscar uma parceria, mesmo sem a certeza do encontro, pode favorecer a sensação de controle sobre a própria vida amorosa e sexual. A sensação de controle e agenciamento da própria vida amorosa pode minimizar o risco de possíveis frustrações.

Acredito também que essa cultura contemporânea moldada pelas mídias digitais, mais individualista, racionalista e voltada para o prazer, impacta as buscas amorosas e sexuais, principalmente de homos¬sexuais e mulheres heterossexuais, pois passam a preponderar critérios de escolha mais pessoais que dependem menos do entorno social para acontecer.

— Então, antes vistos como perigosos, os aplicativos agora podem ser considerados como uma "nova balada de encontro"?

Exatamente! Uma 'balada' mais prática e segura do que as festas convencionais, uma balada onde as primeiras interações acontecem sem a presença de bebidas alcóolicas, no conforto de casa ou em qualquer outro lugar em que se esteja, e ainda com a possibilidade de se checar informações via Facebook, antes de dar prosseguimento à interação face a face.

— Muito interessante! E como você gostaria de concluir essa nossa entrevista?

Gostaria de concluir dizendo que este é um momento histórico onde: tecnologia, amor & sexo, questões de gênero e consumo se misturam, trazendo novas maneiras de se relacionar. E é justamente a busca, e não necessariamente o encontro, o aspecto mais inovador trazido pelos aplicativos de encontros à vida das Tinderelas contemporâneas. A meu ver, elas são verdadeiras heroínas da nossa estória romântica hipermoderna!

Sobre a autora

Regina Navarro Lins é psicanalista e escritora, autora de 12 livros sobre relacionamento amoroso e sexual, entre eles o best seller “A Cama na Varanda”, “O Livro do Amor” e "Novas Formas de Amar". Atende em consultório particular há 45 anos e realiza palestras por todo o Brasil. É consultora e participante do programa “Amor & Sexo”, da TV Globo, e apresenta o quadro semanal Sexo em Pauta, no programa Em Pauta, da Globonews. Nasceu e vive no Rio de Janeiro.

Sobre o blog

A proposta deste espaço interativo é estimular a reflexão sobre formas de viver o amor e o sexo, dando uma contribuição para a mudança das mentalidades, pois acreditamos que, ao se livrarem dos preconceitos, as pessoas vivem com mais satisfação.

Blog Regina Navarro