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Regina Navarro Lins

Agressores ao lado

Regina Navarro Lins

30/09/2014 07h00

Ilustração: Lumi Mae

Ilustração: Lumi Mae

 

Comentando a Pergunta da Semana

A maioria das pessoas que responderam à enquete da semana já sofreu algum tipo de violência numa relação amorosa. E isso ocorre em várias partes do mundo. O comandante da ONU na Bósnia, em 1993, costumava se referir aos rugidos noturnos das metralhadoras em de Sarajevo, como "violência doméstica".

Nos últimos cinco mil anos, a mulher foi extremamente maltratada pela violência do homem, considerada banal no lar. Na Idade Média (séculos 5 ao 15), o marido tinha o direito e o dever de punir a esposa e de espancá-la para impedir "mau comportamento" ou para mostrar-lhe que era superior a ela. Até o tamanho do bastão usado para surrá-la tinha uma medida estabelecida. Se não fossem quebrados ossos ou a fisionomia da esposa não ficasse seriamente prejudicada, estava tudo certo.

Isso durou muito tempo. Mesmo no século 20, ninguém queria intervir em briga de marido e mulher. Alegava-se que se tratava de um assunto privado e havia um ditado popular bem conhecido que dizia: "Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher".

Foi somente na década de 1970, com as iniciativas das feministas, que se começou a estudar o impacto da violência conjugal sobre as mulheres. Mesmo assim muitas continuam sendo agredidas por seus maridos. As estatísticas mostram que grande parte dos ferimentos físicos e assassinatos ocorrem entre pessoas que vivem juntas. No Brasil, uma em cada quatro mulheres sofre com a violência doméstica.

O temor que os homens sentem da revanche sorrateira das mulheres oprimidas parece não ser de todo sem fundamento. Nem sempre elas suportam tanta agressão. Na Penitenciária Feminina de Kanater, no Egito, há um pavilhão onde vivem 1100 mulheres. Elas são conhecidas como as "matadoras de maridos". Impotentes e desesperadas, praticaram o mesmo crime: assassinaram seus maridos. Rejeitadas pelas próprias famílias, quase não recebem visitas e, no entanto, a maioria não se arrepende. Viveram tantos anos oprimidas e humilhadas dentro de casa, que mesmo na prisão se sentem mais livres.

Quando trabalhei como psicóloga no Sistema Penitenciário, entrevistei uma mulher de 38 anos, condenada a 12 por ter assassinado o marido. Chorando muito, contou que morava com ele, a filha adolescente e a mãe idosa. Era comum ele chegar em casa à noite e, por qualquer motivo, espancar as três. Sempre que, desesperada, ameaçava chamar a polícia, ele ficava ainda mais violento. Não suportando mais, decidiu agir. Colocou estricnina na comida dele. Temendo ser castigada por Deus, gritava aos prantos que não pretendia matá-lo. "Só queria que ele sentisse muitas dores na barriga."

Numa relação amorosa é comum haver discussões, afinal, quando não se está de acordo com alguém argumentar, mesmo de forma veemente, é um modo de reconhecer o outro, de levar em conta que ele existe. Na violência, ao contrário, o outro é impedido de se expressar, não existe diálogo. A agressão física não acontece de uma hora para outra. Tudo tem início muito antes dos empurrões e dos golpes. Um olhar de desprezo, uma ironia, uma intimidação, são pequenas violências que vão minando a autoestima da mulher.

Não há necessidade do uso da força para subjugar o outro; meios sutis, repetitivos, velados, ambíguos podem ser empregados com igual eficácia. Atos ou palavras desse tipo são muitas vezes mais perniciosos que uma agressão direta, que seria reconhecida como tal e levaria a uma reação de defesa.

A violência do homem sobre a mulher é mais comum devido à mentalidade de dominação da cultura patriarcal aliada à força física. Mas não são poucos os homens subjugados à mulher. Alguns relatos são curiosos.

Há 2500 anos, Xantipa, esposa de Sócrates, era uma mulher feroz e o atacava fisicamente. "Como é que – perguntou certa vez um amigo ao filósofo – você se mostra satisfeito por tê-la como esposa, embora ela seja a mais malcriada de todas as mulheres que existem?" O filósofo explicou: "Visto que desejo conversar e associar-me à humanidade, escolhi essa esposa sabendo muito bem que, se eu conseguisse aprender a suportá-la, fácil me seria tolerar a companhia de outras pessoas."

As mentalidades estão mudando; muitos homens já compreenderam que a virilidade tradicional é bastante arriscada e cada vez mais aceitam que atitudes e comportamentos sempre rotulados como femininos são necessários para o desenvolvimento de seres humanos.

Tanto que numa pesquisa feita por uma revista americana com 28 mil leitores sobre masculinidade, a maioria deles respondeu que queriam ser mais calorosos, mais doces, mais amantes e que desprezavam a agressividade, a competição e as conquistas sexuais.

Ao que tudo indica, o fim da violência está diretamente relacionado ao fim da ideologia de dominação e ao retorno da relação de parceria entre homens e mulheres.

Sobre a autora

Regina Navarro Lins é psicanalista e escritora, autora de 12 livros sobre relacionamento amoroso e sexual, entre eles o best seller “A Cama na Varanda”, “O Livro do Amor” e "Novas Formas de Amar". Atende em consultório particular há 45 anos e realiza palestras por todo o Brasil. É consultora e participante do programa “Amor & Sexo”, da TV Globo, e apresenta o quadro semanal Sexo em Pauta, no programa Em Pauta, da Globonews. Nasceu e vive no Rio de Janeiro.

Sobre o blog

A proposta deste espaço interativo é estimular a reflexão sobre formas de viver o amor e o sexo, dando uma contribuição para a mudança das mentalidades, pois acreditamos que, ao se livrarem dos preconceitos, as pessoas vivem com mais satisfação.

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